Economias emergentes terão uma nova década perdida?
Guerra na Ucrânia, juros mais altos no EUA, menor atividade no comércio global expõem países em crescimento à estagnação
Um período em que crescem pouco, os países sofrem várias crises financeiras e enfrentam a revolta popular. Por mais que se saiba que as economias possuem uma dinâmica cíclica, ela é mais extrema quando se trata de países emergentes, como pode-se observar ao longo da história:
- Entre as décadas de 60 e 70, cresceram em “ritmo chinês”;
- Entre os anos 80 e 90, sucumbiram para a chamada “década perdida”;
- Próximo à virada do século, voltaram a crescer por meio da expansão na Ásia.
Mais recentemente, com o aumento de juros nos EUA e a reversão da globalização, estaria esse grupo de países fadado a um déjà vu?
Tal como agora, graças a uma década de juros mundiais extremamente baixos e, desconsiderando os gastos públicos em função da pandemia, os índices de endividamento no “mundo em desenvolvimento” (nome dado aos países emergentes na época) eram bastante elevados quando os EUA apertaram a política monetária para combater os efeitos dos choques do petróleo dos anos 70 (1973 e 1979).
A década perdida
Os países emergentes costumam ter, em maior ou menor grau, um ou mais dos seguintes elementos:
- Intervenção por parte do Estado na economia, seja via maior presença de empresas estatais, seja via o seu nível de gastos quando comparado ao PIB;
- Anos de alta inflação, decorrentes de limitações na gestão da dívida pública (cobrança por gastos sociais vis-à-vis a informalidade na economia);
- Maior atuação no câmbio e a imposição de controle de capitais;
- Pauta de exportações baseada em commodities;
- Nível de poupança interna baixo, quando consideradas as oportunidades de investimento.
Consequentemente, se financiam por meio de:
- Empréstimos oficiais: são os fornecidos por órgãos como o Banco Mundial;
- Empréstimos bancários: contratos pelos quais os bancos estrangeiros emprestam diretamente para os países;
- Bonds: emissão e venda de títulos de renda fixa no mercado internacional;
- Investimentos estrangeiros diretos: como a construção de fábricas por multinacionais;
- Investimentos de portfólio: comuns nos processos de privatização, quando o mercado de capitais ganha fôlego com a emissão de novas ações.
Efeito dominó
Nos anos de 1982 e 1983, vários países da América Latina deram o calote na sua dívida externa, tomada principalmente junto a bancos norte-americanos que reciclavam os petrodólares dos árabes.
Com o forte aumento dos juros promovido pelos EUA, a economia mundial já se encontrava em recessão desde 1981. Esses países estavam então diante da seguinte situação:
- Aumento no serviço da dívida (o quanto pagavam em juros);
- Desvalorização de suas moedas;
- Pouca demanda internacional para as suas exportações.
Como resultado, uma inflação fora de controle e cortes de gastos públicos.
O México foi o primeiro a declarar que tinha exaurido as suas reservas internacionais, o que cortou o fluxo de empréstimos para os demais países.
A pobreza aumentou (o PIB per capita reduziu-se em aproximadamente 10%) e o salário mínimo, em termos reais, diminuiu em um terço.
Enquanto isso, nos EUA, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os bancos envolvidos buscavam uma solução coordenada, evitando assim implodir o sistema financeiro internacional.
Consenso de Washington
Com o Consenso de Washington, as economias latinas adotaram um novo modelo alguns anos depois. Apesar de ser considerado tecnicamente mais sustentável, ele era longe de ser perfeito pois:
- Favorecia as privatizações, sem contemplar um arcabouço jurídico mínimo para garantir a concorrência entre agentes privados;
- Valorizava as respectivas moedas, sem que endereçasse os seus efeitos colaterais;
- Não estipulava a criação de redes de proteção social, algo de extrema importância para países até então considerados “em desenvolvimento”.
De um modo geral, as economias da região se saíram mais fortalecidas, com regimes militares cedendo a vez para que os governos pudessem ser eleitos de forma democrática.
Quantitative tightening
Voltando para 2022, um aumento de 3% em um único ano é algo que o Federal Reserve (Fed) não faz desde o início dos anos 90. Levando em conta também a redução do seu balanço (“quantitative tightening”), esse promete ser um movimento monetário tão intenso quanto o de quatro décadas atrás.
Esse impacto seria sentido em um contexto de anos de baixo crescimento mundial, o fim do bônus demográfico para economias como o Brasil e as mudanças climáticas.
Com as contas públicas comprometidas e um custo de financiamento mais caro, não é difícil de se vislumbrar um cenário onde países emergentes não encontram alternativas para investir nos elementos indutores de crescimento no longo prazo, como educação e infraestrutura.
A verdade é que muitas das limitações presentes existiam antes mesmo da pandemia.
China como credora
Se antes as discussões se limitavam ao FMI e a um grupo que incluía os bondholders, hoje qualquer renegociação seria muito mais complexa. Nenhum fundo de emergência é autorizado sem que a China também mostre alguma flexibilidade.
Do contrário, o país devedor pega os recursos de um lado para pagar o outro, não utilizando-os para atacar as suas deficiências macroeconômicas, haja vista a enorme dificuldade em se angariar apoio para medidas de austeridade quando a população sofre uma combinação explosiva de racionamento e aumento generalizado de preços.
Conclusão
Com a guerra na Ucrânia, tornou-se desafiador fazer a gestão da dúvida pública, conforme produtos importados como combustíveis e alimentos, normalmente subsidiados, ficaram mais caros. Instabilidade social e, consequentemente, política não combina com yields baixos.
A fuga do risco característica do capital que busca proteção nos juros mais altos dos EUA agora é complementada pelo peso do fator geopolítico. Os ventos contrários são uma soma de menor atividade no comércio global e a luta pela autossuficiência, sem nos esquecer das questões internas da China.
Privados de financiamento e de condições para que possam exportar mais e melhor, é fato que os países emergentes, ainda que tenham incrementado as suas reservas internacionais, estão expostos à armadilha da década perdida.
Não havendo consciência disso no momento de votar, a única saída é emigrar.
*Este artigo não reproduz necessariamente a opinião do portal Mais Retorno.
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