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FTX: a exchange cripto que virou pó

Corretora, por alavancagem, emprestou tanto os seus ativos como os de terceiros, favorecendo a especulação

Data de publicação:16/11/2022 às 05:00 - Atualizado 2 anos atrás
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Há um ano, a FTX, terceira maior exchange de criptos do mundo, era avaliada em US$ 25 bilhões após uma rodada de aportes com a participação de nomes de peso do mercado financeiro, como a gestora BlackRock e o fundo soberano de Singapura (Temasek).

Ela não estava surfando a onda sozinha. Na mesma época, 12 startups que exploravam a tecnologia blockchain tinham se transformado em unicórnios.   

Três empresas do império FTX trocaram tokens entre si para garantir operações de empréstimo - Foto: Reprodução

Com o preço do bitcoin nas máximas, acreditava-se que uma demanda cada vez maior levaria à regulamentação do setor e, consequentemente, à criação de novos serviços, tal como ocorre no mercado financeiro, onde se encontram as casas de análise e os custodiantes de ativos, por exemplo.

Criptoportunidades

No mundo virtual, os criptoativos são criados a partir de:

Não por outro motivo, as investidas das exchanges. A Coinbase, via o seu braço de venture capital(VC), apostou em vários negócios enquanto a própria FTX se juntou a outras empresas para bancar um fundo de games de US$ 100 milhões.

Diferentemente das Big Techs, fomentadas no Vale do Silício, a corrida pela riqueza cripto era em escala mundial.

Criptolobby

Com tanto dinheiro fluindo em um única direção, nada mais comum que governos queiram controlá-lo ou até mesmo taxá-lo de alguma forma. Na Europa e nos EUA especificamente, tornou-se praxe contratar pessoas como um mínimo de experiência na máquina administrativa ou em alguma agência reguladora com o intuito de se fazer lobby.

Até mesmo empresas com poucos recursos e nenhuma estratégia inovadora defendem os seus interesses via associações setoriais. Se as regras são inevitáveis, melhor então “ajudar a moldá-las”, principalmente em relação às mais onerosas, que servem basicamente para proteger os pequenos investidores.   

Entre as pautas defendidas pelas exchanges e demais participantes, a auto regulação e a criação de um órgão específico para o mundo cripto. Para conseguir a atenção dos congressistas, bitcoins eram distribuídos.

Criptobaixas

Com o fim do dinheiro barato no mundo, imaginava-se algum expurgo entre as empresas com fundamentos menos sólidos. Ainda assim, esperava-se que os próprios players tomariam a iniciativa de manter o ecossistema funcionando.

Por mais que demonstrem capacidade financeira, é fato que não conseguem conter as solicitações de saques. No caso da FTX, ela precisou honrar US$ 650 milhões em um único dia. 

Se o negócio não vai bem, o que dizer então do seu token, que em tese deveria distribuir parte dos lucros aos seus detentores? Com o pânico que se instalou, o token da FTX perdeu 90% do seu valor.  Mas isso não é tudo. 

Como em qualquer crise bancária, quando uma instituição importante degringola, é apenas uma questão de tempo até que suas contrapartes (parceiros de negócios) tenham o mesmo destino.

Faroeste cripto

Intrigas entre bilionários cripto à parte, a verdade é que as 3 empresas do império FTX (as exchanges FTX global e FTX norte-americana, além do fundo de cripto Alameda Research) trocavam tokens entre si, inclusive para garantir operações de empréstimo.

Ao operar no limbo, a FTX, que deveria apenas intermediar os negócios entre compradores e vendedores, mediante o recebimento de uma taxa, foi além. 

Por meio da alavancagem, emprestou tanto os seus ativos como os ativos de terceiros depositados nas exchanges, favorecendo a especulação e algumas apostas bastante arriscadas, o que impulsionava o valor dos seus próprios tokens, conforme o volume de negócios aumentava.

Que valuation?

Diferentemente de ativos tradicionais que pagam juros, dividendos ou renda (inclusive de aluguel), por meio dos quais pode-se chegar a um preço de referência, não existe qualquer métrica para a classe dos criptoativos, expostos ainda a ações de hackers que se aproveitam de suas falhas.

Além disso, em um mundo de juros mais altos, muitos desses instrumentos virtuais, pelos quais os agentes emprestam dinheiro entre si, precisam pagar retornos cada vez maiores, o que os empurra para operações ainda mais arriscadas.

Patrimônio de US$ 1

Voltando ao caso da FTX, agora sem aposta alguma para fazer, seu “patrimônio” hoje é de US$ 1 de acordo com a Bloomberg. 

Os mesmos investidores que, empolgados, faziam fila pra bater na porta há um ano sumiram. Não há ninguém, nem mesmo um “banco central cripto” para oferecer um mínimo de ordem e liquidez.  Sem um seguro para os depósitos (a exemplo dos bancos e o FGC), o dinheiro simplesmente virou pó. 

Sam Bankman-Fried, fundador da FTX e filho de professores do curso de direito da Universidade de Stanford, faliu. Agora, ele terá que encarar as autoridades norte-americanas.

Conclusão

Sam em nada se parecia com os golpistas cripto e seus esquemas de pirâmide financeira. Encantado com as possibilidades oferecidas pela tecnologia, acreditava no seu grande projeto. Ciente da dedicação que um mercado sempre aberto exige, dormia ao lado da sua mesa de trabalho. 

Bilionário cripto com 30 anos, planejava doar a sua fortuna, composta basicamente por ações do seu próprio negócio, já que não tinha qualquer apego a bens materiais.  Com os seus recursos, socorreu outras empresas e batalhou pela regulamentação do seu setor.  

Casos como o da FTX mostram que Robert Shiller, vencedor do prêmio Nobel de Economia de 2013, tinha razão quando publicou o seu livro Economia Narrativa

As crenças que circulam nas redes sociais e que se fixam no consciente coletivo (a inclusão financeira e a formação de riqueza) realmente são construídas em torno de um contexto (bancos que “cobram caro” em conjunto com governos que gastam demais e geram inflação) e de uma pessoa (um “visionário”) para que se espalhem rapidamente.    

A FTX caiu pelos mesmos motivos de sempre: a ganância e o medo dos seus 5 milhões de usuários, por mais brilhante e altruísta que seja o seu fundador. 

Quando algo dá errado, todos querem apontar para o culpado. Para a sua defesa, Sam contratou o mesmo advogado de Michael Milken, o “rei dos junk bonds” da década de 80. Os mercados evoluem e amadurecem, mas as pessoas, infelizmente, não.

Sobre o autor
Nohad HaratiPossui MBA em Finanças e LLM em Direito do Mercado Financeiro (ambos pelo Insper/SP). É gestora de uma carteira proprietária, além de ser responsável por um Family Office.