Estourando a criptobolha: impactos da regulamentação das stablecoins
Muitos acreditam que as moedas virtuais dominarão o mundo, resolvendo os grandes problemas atrelados às moedas nacionais
As criptomoedas e as moedas digitais emitidas por bancos centrais (CBDC), que começaram como meros experimentos, ganharam bastante relevância após a pandemia.
Modismo ou não, a verdade é que muitos acreditam que as moedas virtuais dominarão o mundo, resolvendo os grandes problemas atrelados às moedas nacionais: inflação, desigualdade e instituições financeiras “grandes demais para quebrar”.
Obviamente, a realidade não é bem essa. Olhando mais atentamente para o que ocorre nos EUA, pode-se obter algumas pistas sobre o futuro do mundo cripto.
SEC
A recente troca de comando na Securities and Exchange Commission (SEC) é uma delas. Gary Gensler não esconde a sua desconfiança: a “cripto esfera” é dominada por pirâmides financeiras e golpistas.
Na sua visão, os tokens nada mais são que instrumentos altamente especulativos, encobertos por uma grande camada de opacidade. Dito de forma mais simples, pouco se sabe sobre os seus fundamentos, o que dificulta a sua precificação até mesmo por profissionais mais experientes.
Valor mobiliário
Pelas leis brasileiras, todo e qualquer ativo caracterizado como valor mobiliário deve ser fiscalizado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O mesmo se aplica à SEC, que se utiliza de alguns critérios para definir o que são securities. Para tanto, recorre ao “Teste de Howey” para identificar se:
- O investimento em si se refere a um empreendimento comum;
- Os investidores almejam obter lucro por meio de uma atividade que é exercida por terceiros.
Nos EUA, como o bitcoin é classificado como pertencente ao grupo de commodities, a grande dúvida é se as stablecoins (moedas virtuais lastreadas em moedas de grande aceitação como o dólar e o euro) não se encaixariam nos parâmetros do teste.
Lastro
Tether, a maior das stablecoins, emite os seus tokens assegurando que eles podem ser trocados por US$ 1 a qualquer momento. Para que isso aconteça, é fundamental que a plataforma tenha ativos de qualidade como lastro.
O problema é que esse não é o caso: dólares em espécie e títulos do tesouro norte-americano representam apenas 5% do total de ativos detidos. Em uma situação hipotética, bastaria que a carteira perdesse 0,26% do seu valor de mercado para que a stablecoin deixasse de honrar aquilo que promete.
Além disso, seu crescimento exponencial assusta. Em agosto do ano passado, não haviam mais do que US$ 14 bilhões em tokens. Hoje, já se fala em US$ 100 bilhões.
Percebe-se que são muitos participantes explorando a mesma ideia. Atualmente, existem mais de 11.000 criptomoedas, que são então trocadas por stablecoins e vice-versa, somando US$ 1,6 trilhão, ou algo como todo o PIB do Canadá.
O fato de haver uma presença cada vez maior de investidores institucionais não afasta a volatilidade a cada anúncio de novas normas, cada vez mais restritivas.
Apenas parte do impacto é amortecido pelos fundos quantitativos, que entram comprando quando se alcança um determinado patamar de preços, o que quer quiser que a cripto esfera não está isenta de problemas maiores.
Criptocrise
Diferentemente da grande crise financeira de 2008, uma cripto crise seria mais complexa. Ela poderia ser originada tanto pelo lado de fora (reguladores impondo novas leis ou banqueiros centrais subindo os juros) como pelo lado de dentro (falhas decorrentes de sua tecnologia ou das próprias exchanges).
De uma forma ou de outra, ela impactaria todos os tipos de investidores:
- Aqueles que acreditam que as criptomoedas substituirão as moedas nacionais;
- Aqueles que acreditam que o seu preço só tende a subir, com mais pessoas participando;
- Aqueles que compram por último, simplesmente porque o seu vizinho comprou.
No caso de uma queda abrupta, como é bastante comum, o último grupo é o primeiro a sair enquanto o primeiro grupo permanece pela sua convicção na tendência de longo prazo. Dito isso, o caos só é evitado se o segundo grupo não fizer nada, visto que a queda de uma criptomoeda dominante arrasta as demais.
Prejuízo real
As perdas no mundo virtual se transferem então para o mundo real. Os primeiros danos recairiam sobre as ações de empresas que possuem criptomoedas em carteira (a exemplo da Tesla) ou que já as utilizam em escala comercial (como a PayPal).
O mesmo ocorreria com as fabricantes de placas de alto desempenho, usadas para a validação de operações. Considerando as estimativas mais conservadoras, as perdas chegariam a US$ 2 trilhões, o que equivale ao valor de mercado da Amazon.
O segundo impacto seria sentido pelos próprios investidores. As exchanges permitem a alavancagem sem exigir muito. O outro lado da moeda é que liquidam os negócios sem dó quando a volatilidade chega.
Para compensar um cripto prejuízo, seus usuários se vêm forçados a vender outros ativos de suas carteiras, gerando mais prejuízos.
Conclusão
Na ausência de mais informações sobre como devem operar, as exchanges que negociam stablecoins preferem simplesmente correr o risco de serem multadas. Afinal, os EUA sempre foi um mercado propício para a criação de novos instrumentos financeiros.
No século 19, era comum que instituições financeiras emitissem as suas próprias cédulas, ainda que contassem com nada além da confiança. Usando um caso mais recente, os money market funds surgiram há 50 anos como um produto inovador. Acabaram extintos com a volatilidade causada pela crise financeira de 2008.
Olhando pra frente, com mais normas a cumprir, isso pode acabar com uma série de cripto negócios. A própria SEC, sob novo comando, tem buscado apoio para leis mais abrangentes, que já incluam a regulamentação de novas tecnologias como as finanças descentralizadas (DeFi).
O receio das autoridades se resume ao efeito multiplicador nos mercados daquilo que não entendem plenamente. O Fed de Jerome Powell já se manifestou bastante favorável a um maior controle, chancelado pela própria pressa da secretária do Tesouro Janet Yellen em endereçar a questão.
Independentemente do lado em que se está, o futuro sempre chega mais rápido do que se imagina.
*Este artigo não reflete necessariamente a opinião do portal Mais Retorno.