Vistos gold: muito além da especulação imobiliária nos países que 'vendem' passaportes
Mais de 80 países oferecem passaportes diferenciados a estrangeiros, mas essa lista tende a ficar bem menor
Em 2018, pouco mais de uma dezena de países “vendia” passaportes para pessoas que desejassem outra nacionalidade enquanto algo em torno de uma centena permitia a residência mediante um “investimento” que podia variar entre US$ 100 mil e US$ 2 milhões.
Em torno desse tipo de negócio, conhecido como Citizenship and Residence by Investment (CRBI), advogados, banqueiros, contadores, consultores e corretores imobiliários, nem sempre isentos, ajudavam seus clientes a “mudar de ares”.
As justificativas para a troca de cidadania eram as mais variadas: instabilidade política, violência e a possibilidade de oferecer melhores condições aos filhos. Já entre aquelas não tão nobres, fugir do fisco ou até mesmo da cadeia. Entre esses extremos, a procura por um clima ameno ou uma residência definitiva após uma permanência feliz, mas breve.
Passados 5 anos, a maioria dos interessados é da China, sendo os EUA o país mais disputado, com uma lista de espera de 15 anos.
Origens do CRBI
Tudo começou no Reino de Tonga, no Pacífico Sul, que em 1983 esboçou o primeiro programa de cidadania. São Cristóvão e Neves (Saint Kitts and Nevis), no Caribe, implementou o seu logo em seguida, em 1984.
Os recursos levantados eram utilizados para bancar a infraestrutura, diversificar a economia e prover serviços básicos. Em alguns casos, serviam para reconstruir regiões afetadas por desastres naturais, como aconteceu com Dominica, também no Caribe.
Em 1986, foi a vez do Canadá (atualmente, apenas a província de Quebec o oferece). Os EUA lançaram o visto EB-5 poucos anos depois, exigindo um investimento de pelo menos US$ 1 milhão (ou pelo menos US$ 500 mil nas regiões com alto índice de desemprego).
Documento que abre portas
A lista de “celebridades” que tentam resolver a vida usando os CRBIs de forma criativa, para dizer o mínimo, é extensa.
A título de exemplo, Roman Abramovich, que até o ano passado era o dono do clube de futebol inglês Chelsea, procurou a Suíça quando teve dificuldades para renovar o seu visto inglês.
Recusado por questões de reputação, ele foi então atrás de um passaporte israelense por também ser judeu, o que o permitiu voltar ao Reino Unido sem visto algum.
Com a proliferação desses programas, um grupo cada vez maior (e menos famoso) passou a procurar pelas brechas.
Motivações diversas
Nos Emirados Árabes Unidos, estrangeiros podem comprar a residência e, ao mesmo tempo, estabelecer ali o seu domicílio fiscal, dada a isenção de imposto sobre a renda para pessoas físicas. Com isso, conseguem abrir contas bancárias em outro país sem que tenham que informar o fisco de origem.
Pelas cifras envolvidas, os vistos e passaportes gold atendem a outros interessados também.
Na Grécia, um incorporador imobiliário criou o seguinte “esquema”: comprar empreendimentos a preços de mercado para então enquadrá-los como destinados a investidores estrangeiros, devolvendo aos compradores parte do “ágio” pago.
O passaporte da União Europeia
Os maiores problemas podem ser vistos na Europa, que legisla por meio de um conjunto de normas comuns. O passaporte da União Europeia (UE) permite livre trânsito dentro de suas fronteiras, sendo os países periféricos os mais entusiastas com esse tipo de arranjo.
Qualquer cidadão, a partir de um visto gold que exija valores módicos, pode depois se mudar para a Alemanha ou a França. Em função disso, no ano passado, o Parlamento Europeu chegou a discutir medidas para eliminar de vez os passaportes gold e impor mais rigor para a concessão de vistos gold.
Portugal como case de sucesso
A repercussão não poupou Portugal e seu bem sucedido CRBI.
Mediante a aquisição de uma propriedade, era possível obter um visto de permanência com validade de 5 anos, além do livre acesso ao chamado Espaço Schengen. Completados os 5 anos, podia-se solicitar a permanência definitiva, como também a cidadania e o passaporte da UE.
O programa deixou de existir, considerando os efeitos colaterais sentidos nos altos preços do mercado imobiliário.
Cavalo de Tróia
Outros países dentro do bloco tendem a seguir o exemplo e não necessariamente pelos mesmos motivos. No caso da Irlanda especificamente, o programa foi encerrado por preocupações com a lavagem de dinheiro e a evasão fiscal.
É fato que Bruxelas, de onde se comanda a UE, considera a discricionaridade dos países membros para conceder cidadanias como um potencial “cavalo de Tróia” para o bloco econômico.
Conclusão
Entre as medidas para amenizar os transtornos com os passaportes e vistos gold, as utilizadas pelos bancos (“Know Your Client” - KYC), sempre chamados para contribuir no trabalho de fiscalização e controle, e pelas autoridades internacionais (lista de países com restrições).
Apesar de mais de 80 países oferecerem o visto e o passaporte para estrangeiros, é pouco provável que a lista não se reduza de forma substancial. Recentemente, Irlanda e Portugal fecharam as portas, mas não são casos isolados.
Chipre já tinha encerrado o seu CRBI em 2020, em pleno ano de pandemia, enquanto a Grã-Bretanha, já com o Brexit em vigor, fez o mesmo dois anos depois.
Destinos menos atraentes
Aos que ainda buscam um destino europeu e acessível, as notícias não são nada animadoras. Enquanto Bulgária e Malta podem ser “convidadas” a rever seus “pacotes de incentivos”, a Grécia aumentará o valor mínimo para 500 mil euros em maio.
Fora da UE, os procedimentos para barrar os estrangeiros são relativamente simples. Basta o retorno da exigência de visto para a entrada de cidadãos que, em outras circunstâncias, não teriam essa necessidade.
Apelo popular
O “investimento” na segunda cidadania não é sem riscos. Quando as coisas ficam difíceis, a população sempre espera que o governo faça alguma coisa (do contrário, escolhem outro governante nas eleições seguintes).
Com inflação alta, juros elevados e baixo crescimento, muitos tendem a seguir o exemplo de Portugal, esquecendo que os “estrangeiros”, mesmo quando não estão no país, pagam taxas, impostos e assessoria local, além de manterem aplicações no país.
Mudanças nas regras (como o domínio da língua local) ou até mesmo a interferência no direito de propriedade, razão pela qual muitos decidem pela mudança definitiva de endereço, certamente não combinam com a imagem de segurança e estabilidade dos países de primeiro mundo.