Economia

Quebra do Silicon Valley: Sistema bancário é o eterno vilão?

A alta dos juros e a falta de obrigatoriedade de marcação a mercado dos títulos de renda fixa explicam as dificuldades do Silicon Valley, que fechou as portas

Data de publicação:21/03/2023 às 08:00 - Atualizado 2 anos atrás
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Quinze anos depois da crise financeira de 2008, estaríamos fadados a mais problemas dentro do sistema bancário? 

Observando as notícias mais recentes, é difícil não se recordar do movimento “Occupy Wall Street”, da valorização do ouro e dos grupos anárquicos que alegavam a necessidade de se utilizar uma moeda que não fosse controlada por governos e bancos centrais “irresponsáveis”.

Nenhum banco sobrevive se todos so seus correntistas resolvem sacar ao mesmo tempo - Foto: Reprodução

Naquela época, o foco estava nas instituições consideradas muito grandes para falir (“too big to fail”), que se aproveitaram da especulação imobiliária para dar crédito a pessoas que sequer tinham condições para tal (ironicamente, nada muito diferente do que a FTX fez até quebrar).

Como em toda crise, junto com a interferência governamental veio o remédio amargo que, no caso dos bancos, era o seguinte: se livrar dos empréstimos de baixa qualidade e manter títulos do Tesouro norte-americano (Treasuries), mais seguros e facilmente transacionados.

Too small to bother 

Ainda que parte da regulamentação aplicável às grandes instituições bancárias tenha sido revertida via lobby durante a gestão de Donald Trump, em nenhum momento os demais agentes foram obrigados a marcar a mercado as carteiras cujos títulos eram mantidos até o vencimento. 

Isso explica as dificuldades do Silicon Valley Bank (SVB), que fechou as portas. Enquanto o mundo dos juros baixos pouco rentabilizava os papeis mais curtos, o banco colocava na carteira os de prazo mais longo para obter um retorno maior.

Com o início das altas de juros (e a consequente reversão desse processo), os mesmos passaram a valer menos, ainda que os prejuízos só fossem contabilizados à medida em que eram vendidos para honrar os saques de depositantes.

Prejuízo a realizar

Calcula-se que dentro do sistema bancário norte-americano, US$ 620 bilhões em títulos estejam nessa posição.

Para entender os impactos dessa ordem de grandeza, uma queda de 10% em seu valor já seria o suficiente para eliminar pelo menos 25% do patrimônio líquido dos bancos, gerando a necessidade de se emitir novas ações. 

Balanço invertido

Levando-se em conta que a “corrida bancária via app” do SVB se iniciou com pessoas familiarizadas com o seu modus operandi, o que mais elas constataram?

A grosso modo, o balanço de um banco é o inverso do balanço de uma empresa. Do lado do ativo (lado esquerdo), as operações com terceiros e, do lado do passivo (lado direito), os recursos dos depositantes. 

No início do ano passado (antes do aumento dos juros), os ativos bancários nos EUA, somando aproximadamente US$ 24 trilhões, estavam distribuídos, por ordem de liquidez, da seguinte forma: 

  • Pouco mais de 14% em disponibilidade imediata (dinheiro);
  • Um quarto (25%) em títulos do governo e hipotecários;
  • Quase metade em operações de crédito (empréstimos).

Já os passivos somavam US$ 19 trilhões em depósitos, metade dos quais cobertos pelo Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), o seguro dos bancos. 

Solidez ilusória

À primeira vista, bons números.  Entretanto, se metade dos correntistas sem direito ao seguro retirassem seu dinheiro, 190 bancos nos EUA não teriam US$ 1 sequer para honrar qualquer saque adicional. 

Primeiro, porque títulos com prazos mais longos possuem uma liquidez menor.  Segundo, porque os demais recursos estão investidos na economia real e, portanto, não podem ser exigidos prontamente.

Risco de taxa de juros

Nos anos pós-crise, acreditava-se que os títulos do Tesouro norte-americano eram mais seguros que os empréstimos, ainda que ambos corressem o risco de mudança nas taxas de juros se e quando a inflação se tornasse um problema. 

Não por outro motivo, a decisão do Federal Reserve (Fed) em criar uma linha de crédito especial com o prazo de um ano, aceitando como garantia papeis pelo seu valor de face (diferentemente do padrão, pelo seu valor de mercado).

Na prática, qualquer banco entregará a sua carteira em troca do acesso imediato a recursos, reduzindo qualquer preocupação sobre os prejuízos não contabilizados.

Emprestador de todas as instâncias

Entre os anos de 1863 e 1913, os norte-americanos enfrentaram 8 crises bancárias, com graves consequências econômicas, o que levou à criação do Federal Reserve System e de seus representantes regionais. 

Pouco tempo depois, foi implementado o seguro sobre os depósitos. Mas, para evitar que os bancos tomassem riscos demasiados, as autoridades estipulavam um limite para os juros que podiam oferecer aos depositantes. 

As coisas funcionaram bem até a década de 70, quando o primeiro choque do petróleo, decorrente de um boicote da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), fez a inflação explodir e o crescimento econômico desacelerar bruscamente. 

Novas atribuições

Desde então, o Fed assumiu outras funções como liquidar bancos falidos, garantir depósitos fora do FDIC, injetar liquidez no sistema bancário e até mesmo salvar um hedge fund (Long-Term Capital Management).

Apesar das diferentes estratégias, todas tinham o mesmo objetivo: estancar a crise e evitar o contágio, mesmo que alguns agentes financeiros fossem “sacrificados” ao longo do caminho. 

Com isso, adquiriram experiência para endereçar outras questões, como a resposta econômica à covid-19, baseada na ampla liquidez e na aceitação de uma variedade maior de títulos do mercado financeiro.

Conclusão

Nenhuma instituição bancária sobrevive se todos os seus correntistas sacam ao mesmo tempo. 

Foi exatamente isso que Ben Bernanke, Douglas Diamond e Philip Dybvig, vencedores do prêmio Nobel de Economia do ano passado, indicaram em seus trabalhos, muitos dos quais utilizados para impor padrões mínimos aos bancos.

Ainda que títulos de renda fixa precifiquem rapidamente para baixo os aumentos de juros, eles não são os únicos ativos que estes agentes possuem, lembrando que taxas de juros mais altas também impactam negativamente os empréstimos, dado o aumento na inadimplência.

Com a nova linha oferecida pelo Fed, teme-se o retorno do moral hazard, encorajando ainda mais a tomada de risco pelas instituições fiscalizadas pela autoridade monetária.

Riscos desconhecidos

Afinal, os bancos norte-americanos pagarão 4,5% pelo privilégio mas, se o retorno sobre os seus ativos for inferior a isso, eles não irão muito longe pois contabilizarão o prejuízo a cada resultado trimestral. 

Felizmente, alguns aprendizados da crise de 2008 ficaram: as autoridades sequer cogitam os infames “bail-outs”, dados os níveis atuais de endividamento público. Além disso, hoje se sabe que regulamentações rígidas demais só servem para fomentar o lado oculto das finanças (“shadow banking”).  

A grande dúvida é o que encontraremos lá na frente, considerando as potenciais distorções que um “Super Fed” pode causar.  

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Sobre o autor
Nohad HaratiPossui MBA em Finanças e LLM em Direito do Mercado Financeiro (ambos pelo Insper/SP). É gestora de uma carteira proprietária, além de ser responsável por um Family Office.