WallStreetBets: o mercado financeiro virado do avesso
Um fórum (WallStreetBets, ou “apostas de Wall Street” em inglês), mais de 8 milhões de seguidores e a valorização astronômica de uma ação. Que roteirista não…
Um fórum (WallStreetBets, ou “apostas de Wall Street” em inglês), mais de 8 milhões de seguidores e a valorização astronômica de uma ação. Que roteirista não adoraria explorar o tema para uma série do Netflix, principalmente após o sucesso de Billions?
Começando pelas características do grupo, que inclusive já foi objeto de estudo e que possui uma identidade própria. Para ser aceito, é preciso se tornar um “degenerado”, cujo único objetivo é “ferrar” o sistema e os “tubarões” que se alimentam dele.
Mais um efeito colateral das redes sociais, ele representa uma outra faceta dos seus integrantes. Algo como os grupos de ciclistas que se juntam nos finais de semana, com a diferença de que causa impacto no patrimônio de pessoas que não possuem qualquer relação com ele.
A situação é tão inusitada que não deixa de ser um desafio até para os próprios reguladores. Acostumados a supervisionar quem pertence ao sistema, não sabem bem como lidar com essa “novidade”. Nesse ínterim, adotam a posição de observadores, emitindo avisos sobre a necessidade de qualificação por parte de quem recomenda a negociação de ações.
A verdade é que agir pontualmente é muito mais difícil nesse caso. Como punir milhões de pessoas que estão exercendo seu livre arbítrio, fazendo o que bem entendem com os seus recursos? Não por outro motivo, no Brasil, o controle recai sobre a B3.
Ao contrário dos EUA, onde existem várias bolsas e empresas de liquidação e custódia, a bolsa local trabalha de forma integrada, se responsabilizado por todas as etapas do processo. Dado que consegue visualizar as posições de todos os participantes, identifica qualquer anomalia no mercado, cobrando dos agentes os devidos ajustes.
Feita a ressalva, o caso da GameStop não deixa de ser um bom aprendizado para qualquer investidor.
O enredo
Em abril do ano passado, a empresa valia algo em torno de US$ 200 milhões. Menos de um ano depois, seu valor já alcançava US$ 30 bilhões, mesmo tendo apresentado um prejuízo de US$ 296 milhões em 2020, decorrente do seu modelo de negócios: a venda de jogos via uma rede de 5.000 lojas físicas.
Contrariando o raciocínio dos hedge funds de que uma empresa pouco preparada para funcionar no mundo pós-pandemia poderia se manter, inúmeros pequenos investidores começaram a não só comprar as ações da GameStop como também a mantê-las em carteira, dificultando a vida de quem esperava lucrar com a baixa dos papéis.
No mercado financeiro, isso é feito de duas formas:
- Aluguel: um agente aluga as ações, vende-as no mercado e depois as recompra, por um preço mais baixo;
- Opções: um agente vende uma “opção de compra” e depois compra as ações no mercado, conforme aumentam as suas chances de ser obrigado a entregá-las.
A protagonista
FOMO, ganância, revolta contra o sistema ou senso de pertencimento a um grupo?
Não importa a razão que cada um escolha para definir o fenômeno GameStop, o fato é que a tecnologia tornou qualquer transação extremamente acessível e fácil. Hoje, qualquer um pode negociar ações dentro ou fora de casa, enquanto realiza atividades tão rotineiras como esperar o Uber ou levar o cachorro para passear.
Dito isso, o que o isolamento social fez foi evidenciar algo que já acontecia desde a década de 70, com a redução das taxas de corretagem e o surgimento de plataformas de negociação cada vez mais democráticas. Pelos cálculos da revista inglesa The Economist, trata-se de uma economia de pelo menos US$ 1 trilhão em 50 anos.
“Gratuidade”
No mundo virtual, quanto maior o número de participantes, mais barato é manter o sistema funcionando. Não por outro motivo, a criação da plataforma Robinhood em 2015, cujo grande apelo é a negociação de ações de forma totalmente “gratuita”.
Porém, poucos sabem como é esse modelo de negócios: as corretoras são remuneradas pelas ordens que encaminham aos seus parceiros, os formadores de mercado com sistemas parrudos e que ganham dinheiro explorando pequenas diferenças de preços.
Um outro detalhe é que, mesmo atuando por meio de parcerias, essas corretoras atendem aos mesmos critérios que as demais, inclusive perante os seus agentes de liquidação e custódia. Isso quer dizer que, enquanto as ações não são transferidas para o seu novo titular, a corretora aporta garantias conforme os preços se movem.
Isso explica porque a Robinhood foi obrigada a suspender a execução de ordens. Diante de um pedido de R$ 3 bilhões em garantias (colateral), a empresa se viu forçada a levantar inicialmente US$ 2 bilhões via linhas de crédito, além de US$ 1 bilhão junto a investidores privados.
Big money
Pouco lembrado na disputa entre as “sardinhas” e os “tubarões”, esse é o grupo que mais ganhou com toda essa estória. Sem regras regulatórias para cumprir ou resgates de pequenos investidores para honrar, são os escritórios de gestão de fortunas familiares que efetivamente exploram essas oportunidades.
Compondo uma riqueza mundial de aproximadamente US$ 6 trilhões, trata-se de uma elite que inclui tanto as famílias de setores tradicionais (“old money”) como aquelas que enriqueceram a partir dos negócios da internet (“new money”).
Independentemente se o dono do dinheiro usa suspensórios ou uma camiseta básica, a verdade é que ele investe em negócios promissores via os chamados co-investimentos, o que exclui a cobrança de qualquer taxa e pode aumentar significativamente o retorno.
Sem ansiedade para ganhar dinheiro, trata-se do investidor ideal para fazer a inovação vingar.
Os coadjuvantes
Injustiça contra os pequenos investidores ou não, no mercado financeiro todo mundo é contraparte de alguém pois nenhuma negociação ocorre no vácuo. Ao contrário do grupo de degenerados, os investidores institucionais trabalham com vários agentes e conversam entre si, de forma que podem desenvolver estratégias distintas.
Adicionalmente, os fundos investem seguindo uma certa lógica e não um desejo irracional de “se vingar” por não participar nas mesmas condições. No caso da GameStop, por mais que houvesse um fundamento na troca de comando de uma varejista decadente de jogos, migrando o negócio para o ambiente online, os preços de suas ações não poderiam subir infinitamente.
Enquanto a maioria torce por uma nova alta, poucos se atentam ao que acontece nos bastidores. Se uma startup barateou a negociação de ações, por que uma outra não usaria a ideia para outros mercados, menos explorados?
Possibilidades
Acertou quem pensou em setores que ainda funcionam por meio de intermediários como a negociação de imóveis e até mesmo obras de arte.
Afinal, a ideia inicial de qualquer startup é organizar um mercado, simplificando-o. Para auxiliar na tarefa de precificação, algoritmos inteligentes alimentados por bancos de dados gigantescos. Como resultado, liquidez e transparência, tal como em uma bolsa de valores tradicional.
Por conta disso, é apenas uma questão de tempo até que outros ativos sejam inseridos, conforme a tecnologia é acolhida por uma regulamentação mais flexível e o “big money” entre novamente para fazer a engrenagem funcionar.
Conclusão
O caso GameStop dá um bom enredo mas dificilmente representa uma força desestabilizadora no longo prazo. Ao contrário do que aconteceu em 2008, não se trata de um problema dentro do sistema financeiro.
Dessa vez, são pessoas sob influência das redes sociais arriscando os seus próprios recursos via estratégias sem fundamento ou convicção. Segurar uma ação com o intuito de “quebrar” um hedge fund está longe de ser um meio válido para se tornar milionário ou se despedir do chefe.
A verdade é que uma soma de fatores tornou essa distorção possível: tecnologia onipresente e onisciente, baixas taxas de juros, ampla liquidez nos mercados e uma certa dificuldade na avaliação de empresas da “nova economia”. Por mais que haja muita informação na internet, ela pouco serve para navegar nesse cenário tão peculiar.
À bolsa, cabe garantir o bom funcionamento do mercado, independentemente de quem esteja jogando: sardinha ou tubarão. O mesmo pode ser dito sobre os reguladores.
“A base do meu trabalho é ler e tirar conclusões.”
Luis Stuhlberger (Gestor do Fundo Verde)
*As opiniões contidas nesse artigo são do autor do texto e não necessariamente refletem a opinião do Mais Retorno