100 dias de guerra: desgaste e deterioração macroeconômica
Novas sanções contra a Rússia poderão ser adotadas, trazendo dificuldades para o resto do mundo
Os primeiros 100 dias de fatos de impacto normalmente ganham as manchetes e, com a guerra na Ucrânia, isso não poderia ser diferente. Ultrapassada a marca, o conflito já se transformou no que os especialistas chamam de “war of attrition” (guerra de desgaste), sendo a Rússia exposta a novas sanções.
Autoridades dos 27 países que compõem a União Europeia (UE) decidiram por cortar as importações de petróleo e derivados até o final do ano, além de excluir o maior banco russo (Sberbank) da rede de mensageria internacional SWIFT.
Entretanto, não passaram despercebidas as rachaduras que estão surgindo dentro do bloco. As novas sanções limitam-se aos produtos transportados por navios, deixando de fora os oleodutos que abastecem a Europa.
Tudo para atrair a adesão de países do leste europeu que fazem parte da UE, como a Hungria. Desde então, o barril de petróleo no mercado internacional encontra-se na faixa dos US$ 120, não oferecendo qualquer alívio para os recordes de alta nos índices de inflação mundo afora.
Dado que as exportações russas de energia agora seguem por outras rotas, seria o caso de se mudar de tática?
Confisco
A conta para a reconstrução da Ucrânia gira em torno de US$ 600 bilhões. Na cabeça de alguns líderes ocidentais, esse valor poderia muito bem ser pago com a venda dos ativos cujo congelamento temporário teria como único intuito fazer Putin mudar de ideia em relação ao país vizinho.
Porém, considerando tudo o que já aconteceu em termos de sanções, um confisco puro e simples deveria antes atender a algumas regras. No caso dos EUA particularmente, o seu presidente só pode ordenar o confisco caso esteja em guerra com o país detentor dos ativos ou não reconheça o seu governo, o que não se aplica à Rússia.
Armas legais
Diferentemente dos europeus, que legislam por consenso, os norte-americanos possuem os seus próprios meios legais para agir. Foi assim em 2003, quando houve a invasão do Iraque e em 2019, quando reconheceu o governo de Juan Guaidó na Venezuela.
Ao mesmo tempo, caso criem um precedente para a Rússia, que não está em conflito direto com os EUA, outros países podem fazer o mesmo, minando as vantagens da diversificação internacional e dos investimentos que atravessam fronteiras.
Isso explica porque outras possibilidades estão na mesa, como a taxação das exportações de petróleo russas ou até mesmo a indicação de contas específicas (“escrow accounts”) para receber os recursos, como foi feito com o Irã no início da década passada, até que as sanções deixem de ter efeito.
Independentemente da forma, a intenção é levantar dinheiro para reconstruir um país. Dito isso, tudo dependeria então do lado prático da coisa.
Público ou privado?
As reservas de um país seriam bloqueadas de forma relativamente simples. Já para os bens privados, como os pertencentes aos oligarcas, apreendê-los seria mais difícil: muitos estão registrados dentro de diversas estruturas empresariais, dificultando a sua identificação.
Além disso, o ônus pela apreensão recai sobre as próprias instituições. Elas são as responsáveis pela manutenção de casas, carros, embarcações e aeronaves de luxo até que sejam colocados à venda.
Mas, para que qualquer plano siga adiante, é preciso consultar alguém que até então não participava tão ativamente das discussões.
O papel da Turquia
A Turquia, além de possuir o segundo maior exército da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), tem uma localização geográfica estratégica: é pelo Estreito de Bósforo que os navios fazem a viagem entre o Mar Negro e o Mar Mediterrâneo, transportando exportações tanto da Rússia como da Ucrânia.
Autorizar a passagem de navios para que cheguem até os portos onde estão estocados os grãos que alimentam o mundo traria uma enorme popularidade ao presidente Erdogan, que enfrenta problemas com a alta inflação mesmo antes da guerra.
Porém, a relação entre a Turquia e os demais membros da aliança militar não é das melhores.
Muitos dizem que esse arranjo visou evitar problemas maiores, colocando o país dentro das regras que os outros gostariam que ele seguisse, como espionar a Rússia e exercer influência sobre os outros encrenqueiros de plantão na região, os seus vizinhos no Oriente Médio.
Como no caso da Europa, as negociações se tornaram mais complexas, trazendo outras complicações.
Derivados
Derivados de petróleo normalmente não recebem tanta atenção no mercado internacional.
As empresas de refino operam com baixas margens, espremidas entre dois riscos que não controlam: o risco geopolítico da atividade de exploração e o risco político da atividade de comercialização (o preço nas bombas dos postos e os seus impactos na inflação).
Com as metas de descarbonização, a infraestrutura mundial de refino sofreu com a queda nos investimentos, tal como ocorreu nos demais setores que fazem parte da cadeia energética, o que explica a alta também no diesel, na gasolina e no combustível de aviação.
A grosso modo, o preço de um derivado nada mais é do que o incremento (prêmio) do custo do refino e, com a capacidade global cada vez menor dada a demanda do mundo pós-pandemia, isso tende a gerar uma maior escassez do produto, afetando a vida de todos.
Conclusão
Pelas manifestações públicas de autoridades de vários países, percebe-se que o resto do mundo também sofre os desgastes, inclusive políticos, da guerra. Considerando que ainda não há qualquer sinalização de paz, são grandes as chances de novas sanções causarem mais dificuldades.
Para países que são grandes exportadores de commodities, como o Brasil, ronda a tentação de se utilizar o espaço fiscal gerado pelos altos preços no mercado internacional (um elemento cíclico) para medidas insustentáveis no longo prazo, como a redução de impostos (um elemento estrutural).
No caso da Europa, além dos impactos econômicos e do risco de fragmentação nas decisões do bloco, existem outras preocupações.
O que mais se teme no momento é que, quando os termos de paz e da reconstrução começarem a ser discutidos, o que inclui o destino dos ativos em dólar congelados pelos EUA, o membro mais forte da Otan já esteja sob o comando do polêmico e não menos errático ex-presidente Donald Trump.