Fundos de Investimentos

Fundos de crédito privado: porque ficam com a cota negativa

Qualquer pessoa que já tenha investido alguma vez entende, de forma bastante intuitiva, o que é a renda fixa: um determinado valor, remunerado à uma taxa…

Data de publicação:06/02/2020 às 10:00 - Atualizado 4 anos atrás
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Qualquer pessoa que já tenha investido alguma vez entende, de forma bastante intuitiva, o que é a renda fixa: um determinado valor, remunerado à uma taxa de juros previamente acordada, e que será devolvido ao final do prazo estipulado.

Indo um pouco além, também é simples para qualquer pessoa assimilar que um título público, por ser emitido pelo Governo Federal, é mais seguro que um título de dívida de uma empresa.

Até 2016, isso funcionou muito bem. Boa parte dos investidores financiava o governo enquanto os títulos privados faziam parte das carteiras de alguns fundos, oferecidos para um público mais específico.

Segmentação dos fundos de crédito privado

Grosso modo, o mundo dos investimentos pode ser divido em 2 grupos:

  1. Os que escolhem os ativos diretamente;
  2. Os que aplicam via fundos de investimentos.

No primeiro, estão as pessoas que investem em Certificados de Depósito Bancário (CDBs) e debêntures de infraestrutura, entre outros títulos de renda fixa. Para elas, se aplica a  “marcação pela curva”, onde os valores dos ativos são atualizados seguindo a lógica apresentada na introdução desse artigo.

Já para o segundo, onde um gestor é responsável pela escolha dos papéis, a regra é diferente. Quando esses títulos passam a fazer parte da carteira de um fundo, eles são registrados de acordo com o seu preço no mercado secundário. Isso se chama de “marcação a mercado”.

A diferença entre ambos é em função de uma imposição da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para garantir os recursos aportados pelo pequeno investidor. Como os cotistas entram e saem dos fundos em momentos distintos, essa contabilização dos ativos evita que alguns levem consigo os ganhos quando sacam, prejudicando os demais.

Contexto econômico dos fundos de crédito privado

No início de 2019, havia uma expectativa de queda nos juros. O que não se esperava era que chegassem a patamares tão baixos.

Voltando aos dois grupos citados anteriormente, para as pessoas que selecionaram os seus próprios ativos, a vida pouco mudou. Os papéis continuaram sendo remunerados pelas taxas contratadas, mais altas quando comparadas aos dos novos títulos colocados no mercado.

Para os fundos, que aumentaram em quantidade conforme mais pessoas migravam para o crédito privado, as cotas passaram a refletir, diariamente, as valorizações dos títulos mais antigos. Dito de outra forma, uma carteira com ativos que pagam 7% vale mais do que outra, recém-constituída, cujos papéis remuneram a 5%.

Perceber essa diferença é importante para entender porque um fundo de renda fixa de crédito privado pode ter cota negativa.

Dois mundos

Ao contrário do mercado de ações, onde os preços são do conhecimento de todos, no mercado de renda fixa, as negociações ainda são feitas entre as instituições financeiras. O motivo é bastante simples: até pouco tempo atrás, não havia mercado secundário para títulos de renda fixa privada, pois todo mundo só investia em títulos públicos.

Isso começou a mudar com a participação mais ativa da indústria de fundos nesse mercado.

Realidade do investidor

Pessoas que tinham a posse direta de títulos privados e não sabiam da valorização dos seus papéis passaram a ser contactadas pelas corretoras para que os vendessem.

A estratégia em si não é nova e as casas de investimento a utilizam com bastante frequência para “girar” o dinheiro do cliente. Nessas situações, dificilmente o investidor resiste à tentação de não realizar o ganho, ainda que alguns não se desfaçam totalmente de suas carteiras.

Com a grande quantidade de títulos que entraram pelo lado da “venda” na tela de ordens, o mercado ficou com poucos compradores para inserir as ordens do outro lado.

Realidade dos fundos

Quando a qualidade de crédito (rating) não se altera, é o desequilíbrio momentâneo entre a oferta e a demanda de papéis que causa a cota negativa.

O problema é que quem a vê se assusta, como se aquele “prejuízo” fosse real. Como consequência, os pedidos de saques se acumulam e o gestor do fundo é obrigado a vender ainda mais papéis, aumentado as ordens do lado da venda.

Exageros começaram a surgir por conta da própria falta de conhecimento do investidor sobre a dinâmica de um fundo de crédito privado, que exige:

  • Prazo maior para resgate: a liquidez quase imediata (até 5 dias) prometida por alguns fundos é basicamente em função do hábito do cotista de querer receber os recursos em não mais do que um dia útil;
  • Gestão: dado o pânico causado pelas ordens de venda, o gestor perde a liberdade para fazer o seu trabalho, que é adquirir papéis com excelentes preços, gerando um retorno maior.

O calote nos fundos de crédito privado

O caso da Rodovias do Tietê, companhia detentora de concessões no interior de São Paulo, trouxe mais atenção ao tema da cota negativa, como se uma coisa estivesse relacionada à outra. Empresa de infraestrutura que tinha emitido debêntures incentivadas no passado a IPCA+8%, ela partiu para a recuperação judicial em 2019.

O desenrolar dos fatos mostra como medidas do mercado podem causar situações inusitadas. Na época em que as debêntures de infraestrutura foram autorizadas por Lei, um de seus principais atrativos era a isenção de Imposto de Renda (IR) para a pessoa física.

Com isso, esse mercado deslanchou sem que as escrituras das debêntures fossem atualizadas para acomodar esse tipo de investidor.  Enquanto elas ainda estipulavam um percentual mínimo de presença para a aprovação em assembleias de credores, poucos se davam conta da dificuldade de se juntar tantos investidores individuais de uma só vez.

Muitos investiram apenas por conta da isenção de imposto, de forma que não acompanharam ou tomaram conhecimento de eventos dessa natureza. Com R$ 1,4 bilhão captado entre milhares de pessoas físicas, a empresa se viu engessada, sem condições de renegociar os seus pagamentos.

Assim, sua única alternativa foi se amparar na proteção da Justiça. Como o plano de recuperação judicial exige apenas a aprovação da maioria dos credores, ela se mostrou mais adequada para o impasse.

Isso não evitou que as debêntures perdessem o seu valor, passando a valer, literalmente, “zero”.

Aperfeiçoamentos a caminho dos fundos de crédito privado

A Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (ANBIMA) já estuda formas de tornar a precificação dos ativos mais clara para os investidores. Entre o que está sendo levado em conta, a divulgação de como o valor de um ativo é determinado (pela “curva” ou pelo preço de mercado).

Isso viria junto com um esclarecimento sobre os fatores que influenciam o preço de um papel no mercado secundário. O objetivo é didático: educar o investidor e dar um prazo para as corretoras ajustarem os seus sistemas para marcar as carteiras de seus clientes a mercado.

A iniciativa é importante, conforme títulos privados de maior prazo são colocados no mercado. Um papel de 15 anos, ainda disponível a um preço razoável, oscila muito mais que um de 8 anos.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) trabalha na mesma linha ao alertar para a necessidade de se adequar os ativos de uma carteira ao perfil de cada investidor. Dito isso, sugere um acompanhamento mais próximo dos impactos que cada um deles pode ter no retorno final.

Conclusão

Um mercado de crédito privado só se desenvolve quando as taxas de juros caem. Quando isso acontece, as empresas, que buscam recursos mais baratos e de prazos maiores para expandir e modernizar as suas operações, encontram os investidores, que procuram por opções mais vantajosas.

Como eles nem sempre possuem o tempo e o conhecimento necessários para avaliar os papéis individualmente, delegam esse trabalho para os gestores de fundos, dada a estrutura que possuem (método de seleção de empresas, monitoramento de preços, etc).

Porém, como qualquer outro sistema dinâmico, o mercado financeiro inevitavelmente passa por períodos de adaptação, tanto pelo lado de seu funcionamento como pelo lado do investidor. A queda adicional, não prevista, da taxa de juros apenas acelerou um processo que aconteceria de qualquer forma, dado o protagonismo da iniciativa privada na recuperação da economia.

Como resultado, pessoas que estavam habituadas a selecionar os seus próprios ativos se desfizeram de suas posições sem muito conhecimento do impacto que estavam causando no mercado enquanto gestores se viram na ingrata tarefa de honrar pedidos os resgates, justo no momento mais oportuno para compor as carteiras.

Um caso isolado foi o suficiente para que a indústria de fundos, bastante robusta, fosse confundida com tantos outros esquemas fraudulentos propagados pela internet. Passado o susto, ficou o aprendizado para todos: sem transparência, não há como o investidor avaliar o risco que está tomando.

“O medo corta mais que a espada.”

Game of Thrones

Sobre o autor
Nohad HaratiPossui MBA em Finanças e LLM em Direito do Mercado Financeiro (ambos pelo Insper/SP). É gestora de uma carteira proprietária, além de ser responsável por um Family Office.
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