Endividado, brasileiro saca R$ 134 bilhões da poupança para pagar contas
Dinheiro mais curto a cada mês está levando poupador a sacar para cobrir o orçamento
Em pouco mais de um ano, a saída de recursos da poupança bateu a casa de R$ 133,6 bilhões, um novo recorde para o espaço de 13 meses, segundo dados do Banco Central. Especialistas em finanças pessoais não têm dúvidas, são unânimes em afirmar que esse dinheiro está indo para complementar a renda e cobrir os gastos de cada mês. Uma parcela menos representativa de poupadores se desloca para investimentos mais interessantes.
Não precisa ir muito longe para entender a situação de aperto financeiro, mas apenas fazer uma remissão às últimas pesquisas divulgadas sobre endividamento no País. A da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) mostra que hoje a cada 100 famílias no País, 79 estão endividadas; a da Serasa indica que 67 milhões de pessoas estão com suas contas em atraso, devendo cerca de R$ 289 bilhões.
O roteiro para o nível crítico de dívidas da população e recorde de saída de recursos da caderneta parece bem definido. Durante a pandemia, as pessoas saíram menos, consumiram menos, gastaram menos e pouparam mais. O pagamento de auxílios sociais ajudou a reforçar o colchão de reservas.
O filme não tem o final feliz. "As pessoas ficaram sem dinheiro, existe uma multidão endividada, que está usando essa poupança agora", afirma Fábio Gallo, professor de finanças da Fundação Getúlio Vargas. Ele explica que a inflação, mesmo que negativa em agosto e provavelmente também em setembro, foi expressiva nos últimos meses e é responsável pela corrosão do poder aquisitivo da população.
Ângela Nunes, consultora e planejadora financeira, e sócia da MoneyPlan, lembra que houve uma melhora no nível de emprego no País - o menor desde dezembro de 2015, com 9,7 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho -, mas não a recomposição da renda. E, embora tenha havido uma queda inflacionária, ela não foi detectada nos itens de consumo das famílias na ponta final.
É da mesma linha de raciocínio Paula Sauer, economista e professora da ESPM: "Para os que estão em uma situação mais delicada, o saque na caderneta pode ter sido uma maneira de compor a renda para minimizar o impacto da inflação, apesar de estarmos em um ciclo de deflação, vale lembrar que alguns produtos da cesta de consumo seguem com preços muito elevados, alimentos por exemplo".
É sabido que a redução de impostos sobre combustíveis e energia teve um peso relevante na queda dos indicadores de inflação no País.
Os especialistas apontam ainda, como causa do dinheiro mais curto, o movimento de pessoas que passaram a sair mais de casa nos últimos meses, a comer fora, a buscar atividades de lazer, e, portanto, a consumir mais com o arrefecimento da pandemia. Os gastos aumentaram levando os poupadores a sacar recursos que estavam na caderneta.
Importante notar que essas pessoas não só estão resgatando seus recursos como também deixando de fazer novos depósitos, deixando de poupar, porque precisam cobrir outras despesas, ressalta Gallo.
Paula, da ESPM, que também é especialista em comportamento do consumidor, associa esse aumento do consumo também a uma compensação financeira para questões emocionais, depois de um período prolongado de luto e incertezas com a pandemia.
"Soma tudo isso e considera que estamos em um ano de eleições importantes, com brigas, polarização, incertezas. Tudo isso gera desconforto, não duvido inclusive que algumas pessoas sacaram da caderneta e colocaram debaixo do colchão com medo de acontecer um novo episódio de bloqueio das cadernetas com tantas fake news circulando", conclui Paula.
Mais complicado para endividados
A situação se complica para os endividados. Ângela, da MoneyPlan, considera assustadora a evolução dos dados sobre as famílias endividadas: o total das que ganham até 10 salários mínimos passou de 72,6% em julho de 2021 para 78,8% em julho deste ano, e algo em torno de 40% delas estão sem condições de manter seus compromissos com o pagamento em dia.
Ela chama a atenção que o nível de endividamento é maior nessa faixa de renda mais baixa, mas o ritmo de crescimento de dívidas foi maior para quem ganha mais do que 10 salários mínimos, o total subiu de 66,3% para 75,0% no mesmo período.
A planejadora financeira relata que a inadimplência está ocorrendo com as contas básicas, água, luz, gás, carnês e cartão de crédito de lojas. "É a vida cotidiana, uma engenharia financeira, um mês eu pago a luz, no mês que vem eu compro gás, é a administração possível para não ficar sem os serviços essenciais", diz ela. Já o nível de endividamento com dívidas mais pesadas, com imóvel e carro, é decrescente nos últimos meses.
Baixo rendimento da poupança é responsável pelos saques?
A elevação das taxas de juro que tornou outras opções da renda fixa mais atraentes do que a poupança também tem lá sua parcela de responsabilidades, mas é mínima, segundo os especialistas.
Ângela comenta que, pelas regras atuais, a poupança paga juros de 0,5% ao mês ou 6,17% ao ano mais a variação da TR. Com a queda da inflação, o rendimento passou a ser positivo e real. Ela não considera que a remuneração seja uma das causas da saída dos investidores.
"É claro que há outros investimentos melhores no mercado e quem tiver condições deve optar por eles, mas a poupança é um produto tradicional, muito simples, traz sensação de segurança, é uma porta de entrada para o mercado, ela tem um papel importante para quem está começando", diz a consultora.
No gráfico abaixo, que mostra o desempenho da poupança em um ano, de agosto de 2021 a setembro deste ano, a poupança já supera a inflação acumulada no mesmo período, mas perde para o CDI, que é referencial para a rentabilidade de outras aplicações em renda fixa, como títulos e fundos.
Bruno Piacentini, sócio e professor da Eu me Banco, traz outros indicadores econômicos para melhor entendimento desse período em que houve a saída de recursos mais acentuada da poupança.
"Nos últimos 12 meses, com referência final em agosto de 2022, o IPCA, índice oficial de preços do Brasil, acumulou 8,73%, segundo o IBGE, machucando muito a população, principalmente, de menor renda. Isso pode ter aumentado os saques de poupanças para consumo e dívidas de curto prazo", diz Piacentini.
Com o descontrole da inflação, o Comitê de Política Monetária, o Copom elevou a taxa Selic em 12 reuniões seguidas, iniciando em março de 2021: a taxa saiu de 5,25% em agosto de 2021 para 13,75% em setembro de 2022, impactando as taxas de juros e financiamentos da economia e, também, os ativos financeiros de renda fixa, segundo o professor da Eu me Banco.
Para ele o mercado vem ganhando novos contornos: "Juntamente com a conscientização da população após prejuízos causados com o início da pandemia, o mercado financeiro vem sofrendo transformações e buscando cada vez mais profissionais preparados para a área de investimentos.